Revista Vida Saudável & Diabetes
Ed.: 20 – Maio de 2014
Páginas: 30, 31 e 32
Título: Neuropatia diabética: prevenir é possível
Exames clínicos regulares ajudam a traçar o diagnóstico precoce da complicação crônica mais comum do diabetes mellitus, que desperta dúvidas e preocupações especialmente entre os pacientes de longa data
Por Letícia Martins
Estima-se que metade da população com diabetes sofra com o problema, que pode afetar qualquer região do corpo. Um dos pontos preocupantes da complicação é que ela nem sempre emite sinais de alerta. Quando o faz, o quadro geralmente é sério.
Na entrevista concedida à revista Vida Saudável & Diabetes, o endocrinologista dr. Luiz Clemente Rolim, responsável pelo Setor de Neuropatias e Pé Diabético do Centro de Diabetes da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp-EPM), explica claramente as causas da doença, os tipos de exames essenciais para a detecção, as terapias disponíveis, que devem respeitar as particularidades de cada paciente, e antecipa as novidades para o tratamento da dor.
Médico pesquisador da Cochrane Collaboration e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Endocrinologia
e Metabologia (SBEM), da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) e da Sociedade Brasileira de Clínica Médica (SBCM), Rolim afirma que é completamente possível acumular anos de diabetes sem desenvolver as lesões nos nervos. Descubra como a seguir.
Vida Saudável & Diabetes: O que é neuropatia diabética e quais são suas causas?
Dr. Luiz Clemente: A neuropatia diabética é a complicação crônica mais comum do diabetes mellitus e está entre as mais impactantes em termos de qualidade de vida. Ela é definida como um grupo heterogêneo de disfunção do sistema nervoso periférico, causada pelo excesso de açúcar (hiperglicemia) e que pode afetar virtualmente todas as fibras nervosas do nosso corpo: nervos sensitivos, motores e autonômicos. O excesso de açúcar no organismo dos diabéticos favorece a proliferação de agentes oxidantes no sangue, isto é, substâncias que são prejudiciais aos nossos nervos, levando a um estresse oxidativo que, por sua vez, pode se tornar permanente caso não seja revertido a tempo.
Vida: Quais regiões do corpo são atingidas?
Dr. Luiz Clemente: Como a neuropatia diabética pode afetar todas as fibras nervosas do corpo, virtualmente todos os órgãos e tecidos que têm nervos podem ser comprometidos. Os nervos são estruturas parecidas com fios elétricos com três funções principais: levar a sensibilidade dos órgãos periféricos para o cérebro (nervos sensitivos); desencadear os movimentos do corpo (nervos motores); e controlar as funções involuntárias do nosso corpo, isto é, que independem da nossa vontade, como o batimento cardíaco, a digestão, a ereção e a evacuação (nervos autonômicos).
Vida: Quais são os sintomas da complicação?
Dr. Luiz Clemente: Justamente por representar um risco em potencial a todo o sistema nervoso periférico, a neuropatia diabética tem manifestações muito diversas: perda de sensibilidade nas extremidades do corpo, dores nas pernas e nos pés que pioram à noite e melhoram ao andar, falta de suor nos pés e excesso de suor na cabeça e no peito, disfunção erétil, que é a dificuldade ou incapacidade de ereção no homem, descontrole da evacuação (constipação intestinal ou diarreia) ou da micção, entre outras.
Vida: É verdade que na maioria das pessoas a neuropatia diabética costuma ser silenciosa?
Dr. Luiz Clemente: Pelo menos 50% dos diabéticos portadores de neuropatia diabética são completamente assintomáticos e frequentemente a doença passa despercebida por muitos anos. Infelizmente, ela costuma ser silenciosa no início e, quando apresenta sintomas, o estágio pode estar muito avançado (irreversível). Assim sendo, não se deve esperar sinais de alerta para se fazer o diagnóstico. Como a neuropatia diabética acomete 50% das pessoas com diabetes, o ideal é que ela seja pesquisada pelo menos uma vez ao ano, independentemente de qualquer sintoma. Agora, é claro que se houver uma suspeita devido aos sintomas característicos, vale a pena consultar um especialista.
“Nos próximos dois anos, teremos novas drogas tanto para tratar a dor quanto para tratar a causa da neuropatia diabética.”
Vida: E como é feito o diagnóstico da neuropatia diabética?
Dr. Luiz Clemente: É crucial deixar claro que o diagnóstico nunca deve basear-se apenas nas queixas dos pacientes, mas é fundamental sempre fazer os testes para avaliar a função dos nervos objetivamente. Entre os testes, existem dois tipos. O primeiro é o exame clínico-neurológico, que serve para testar as sensibilidades térmica, dolorosa e vibratória, bem como um reflexo no tendão de Aquiles. O segundo tipo é o de exames mais sofisticados que exigem aparelhos, como os testes reflexos autonômicos cardiovasculares (TRAC) e os testes neurofisiológicos, como a biotesiometria e a eletromiografia (EMG). Este último é um exame invasivo, doloroso e não detecta os casos mais leves de neuropatia, motivos pelos quais costumamos realizá-lo somente nos casos atípicos ou que fogem à regra.
Vida: Os exames são acessíveis na rede pública de saúde?
Dr. Luiz Clemente: Sim, os testes clínico-neurológicos podem ser feitos em qualquer consultório por um médico que possua conhecimento e perícia para realizá-los. Na prática, para se ter certeza do diagnóstico da neuropatia diabética, são necessárias duas condições: haver pelo menos dois testes alterados entre os quatro citados anteriormente e afastar-se outras causas de neurite, como hipotireoidismo, anemia, alcoolismo, hepatite, hérnia de disco, drogas neurotóxicas e câncer.
Vida: É possível chegar a uma idade avançada do diagnóstico, por exemplo, 15 anos de doença, sem desenvolver a complicação? Como?
Dr. Luiz Clemente: Sem dúvida! Recentemente examinei uma paciente de 29 anos com diabetes tipo 1 há mais de 20 anos (atualmente em uso de bomba de insulina). Felizmente ela não tinha nenhum tipo de neuropatia! Como isso é possível? Tudo vai depender da presença ou ausência dos principais fatores de risco para o desenvolvimento da neuropatia. Hoje sabemos que, além do bom controle glicêmico
desde o início do diabetes, outros fatores também protegem os diabéticos contra o aparecimento da neuropatia. Níveis normais de colesterol e triglicérides, não fumar, fazer atividade física regular e não ganhar peso ou emagrecer, no caso daqueles que estão acima do peso. Este último fator é comumente esquecido até por profissionais de saúde experientes, mas é importantíssimo.
Vida: Então o tempo de diagnóstico não é o principal fator de risco?
Dr. Luiz Clemente: Não. Embora a neuropatia diabética seja uma complicação complexa e multifatorial, o principal fator de risco é a hiperglicemia crônica, ou seja, o excesso de açúcar no sangue.
Vida: Neuropatia autonômica é o mesmo que neuropatia diabética? Existem graus diferentes do problema?
Dr. Luiz Clemente: Não são sinônimos, mas costumam andar juntas. Em geral, a neuropatia autonômica é uma neuropatia diabética, mas nem toda neuropatia diabética é autonômica. A forma mais comum de neuropatia diabética é a sensitivo-motor, aquela que afeta predominantemente os nervos sensitivos dos pés. Já a neuropatia autonômica ocorre justamente quando o diabetes acomete predominantemente as fibras autonômicas do sistema nervoso periférico e representa uma das complicações mais perigosas do diabetes, pois é muito silenciosa e quando os sintomas aparecem às vezes é tarde demais.
Vida: Há quanto tempo o senhor é responsável pelo setor de neuropatia diabética do Centro de Diabetes da Unifesp?
Dr. Luiz Clemente: Desde 2004, quando iniciei o Mestrado em Endocrinologia. Somos uma equipe multidisciplinar coordenada pelo prof. dr. Sérgio Atala Dib e estamos com quatro projetos de pesquisa em andamento, além do atendimento aos pacientes em dois ambulatórios diferentes: às quintas-feiras pela manhã temos o Ambulatório de Neuropatias e às quartas-feiras à tarde, o recém-inaugurado Ambulatório do Pé Diabético. Ambos são primariamente para atender os casos mais complexos e raros do Hospital São Paulo, para os quais há interesse científico.
Vida: Durante todos esses anos, o número de casos de neuropatia diabética tem aumentado?
Dr. Luiz Clemente: Eu não diria isso, mas sim que está havendo uma maior consciência sobre o assunto, tanto por parte dos médicos como dos pacientes. A neuropatia diabética sempre existiu, mas felizmente estamos fazendo mais diagnóstico, embora nem sempre seja precoce. Avalio com otimismo e muita esperança a situação atual, pois neuropatia diabética é uma doença possível de prevenir e hoje há muito o que fazer para melhorar a qualidade de vida de todos os pacientes.
Vida: Existe cura para a neuropatia? Quais são os tratamentos?
Dr. Luiz Clemente: Tudo vai depender do grau de reversibilidade da neuropatia, isto é, se ela está em um estágio inicial (leve), moderado ou avançado (grave). Ora, com o exame clínico e com os testes disponíveis atualmente, temos condições de classificar a gravidade da neuropatia. Nos casos leves e moderados, vale a pena ser mais agressivo no controle rígido do diabetes, porém nos casos avançados deve-se ter prudência e evitar sempre a hipoglicemia. Gostaria de ressaltar que o primeiro passo para o sucesso do tratamento da neuropatia diabética é um diagnóstico preciso e realizado a tempo, logo nos primeiros anos do diabetes mellitus.
Vida: O tratamento é individualizado, portanto?
Dr. Luiz Clemente: Exatamente. É importante deixar claro que a neuropatia diabética é um tema complexo, não existe uma panaceia, uma única droga que vá resolver tudo, porque é uma doença polifacética, policausal e polimórfica. Em suma, o que serviu para um não vai ser útil para o outro, pois não há dois casos iguais. Devemos tratar com carinho cada paciente e sempre educá-lo em relação ao controle do diabetes. Costumo dizer que, apesar de muitas questões estarem mudando na área da diabetologia, uma coisa não mudou: o diabético tem que ter vida disciplinada em relação à dieta saudável, à prática de atividade física, aos horários das refeições e das medicações.
Vida: Existem novidades na área médica, como exames, medicamentos e tecnologias para tratar a neuropatia diabética?
Dr. Luiz Clemente: Sim. Nos próximos dois anos teremos novas drogas tanto para tratar o sintoma (a dor) quanto para tratar a causa da neuropatia diabética.
Um medicamento promissor que está sendo testado no EUA é o chamado “Peptídeo C”, que poderá ser administrado semanalmente por via subcutânea, embora as pesquisas caminhem lentamente. Em síntese, gostaria de dizer que a prevenção e o diagnóstico precoce da neuropatia diabética são fundamentais tanto quanto manter o controle glicêmico e estar permanentemente vigilante aos possíveis sinais da complicação.